domingo, 5 de abril de 2015

É março

Eram três belas mulheres cada uma bem diferente da outra.
Uma morena de cabelos cacheados, traços finos, mais romântica, Lili.
Uma matrona italiana de seios fartos, loira de olhos azuis, Clau.
E uma quase ruiva de cabelos curtos e fortes, olhos grandes expressivos, Mel. 
As três passeavam pela vila Madalena.
-Levamos guarda-chuva? – pergunta Mel.
-Não, está apenas chuviscando. É bom se molhar um pouquinho- responde Lili.
-  Também gosto de me molhar. E Nem estamos usando branco pode chover, tá um calor... - completa Clau.
-É março. – lembra Lili
- É março. – constatam todas.
Sem se preocuparem com a chuva, saíram a esmo a fim de... a fim.

Entram em vários lugares, galerias de arte, exposição de fotos, almoçam num restaurante que era venda, quintal e biblioteca.
-       A Vila Madalena é mesmo uma delícia né? ( Clau)
-       Uma delícia. ( suspira Mel)

Depois do almoço, caminham pelas ruas sentindo a alternância de golpes de chuva e  garoa paulistana. Trovoadas e relâmpagos acontecem. Não incomodam a Lili, talvez um pouco a Mel e Clau.

Mel - Precisamos de um doce.
Lili- Lisérgico?
Clau- De um bolo com recheio e cobertura pra colorir o dia.

Lili-  Colorir o céu cinza...
Clau-  Como em Londres a maioria das pessoas aqui veste preto. ( observa)
Mel- Aqui na vila até que vestem cor.  (discorda)

Lili- Cores de domingo. E chuva, chuva... (devaneia)
Mel- Hoje é domingo?
Todas- É março.

Clau- Onde tem uma doceria... (buscando)
              Lili- Um doce e um café.  (também busca)
Mel- Vamos pra Barcelona. ( ordena com olhos grandes vendo a loja)
Clau- Agora?
Mel- Já!

Entram numa chocolateria chamada Barcelona alguma coisa,  a procura do açúcar pós almoço. Lili resiste em entrar:
-       Gente, essa loja é muito cara.
-       Clau e Mel- E daí? Só vamos olhar.

  A loja é de quitutes de cacau. O moço negro logo nos recebe. O cheiro do ambiente envolve fortemente. Vários tipos de chocolate com diferentes porcentagens de cacau. Aquele homem era lindo. Da cor exata de um dos chocolates da vitrine. Tinham várias tonalidades, o moço parecia ser ao leite. Ele explica cada bombom da vitrine com um sorriso, uma voz grossa, grave. Com sua mão enorme ele pega uma pequena pazinha,  colhe uma porção de chocolatinhos e oferece a Lili.
- Não, obrigada, é muito caro.
-Não se preocupe. ( seco)  Pode degustar.
  Lili vai se aproximando com a mão dela a mãozona dele onde estão a pazinha de prata que acolhe os mini chocolatinhos para pegar um. Nesse movimento ele breca a mão dela no ar.
-Você roe as unhas?
-Sim.
- Não seja tão ansiosa... - aconselha e solta a mão de Lili que agora menos tensa, finalmente alcança um chocolatinho e olha pra ele.
- Põe na boca. – ordena ele. - Não mastiga. Respira.  Deixe- o derreter.
   Lili vai obedecendo lentamente. Até acontecer com ela o que acontece com algumas mulheres quando comem chocolate. Êxtase.
-       Hahahaha! ( ri satisfeito) E olha que esse aí é só 60% cacau.- diz ele sarcástico e agora também mais leve.
As amigas que  assistem a tudo atentas,  demonstram também querer.
-       Ah vocês também querem, né?- diz aquele homem negro lindíssimo.
( elas fazem que sim)
-       Querem mesmo? - e as encara, elas fazem que sim. – Pois não vão ter. Vocês disseram que só iam olhar.
-       Não dissemos nada! - retruca Mel indignada.
-       Disseram sim, no começo do conto antes de entrar na loja, a poucos parágrafos acima. ( Mel olha pra cima frustrada)

Vem dos fundos o outro atendente, caminhando com a maior calma do mundo.
-       Boa tarde. – Todas respondem menos Lili que ainda tem o dedo na boca e observa tudo como se o que houvera provado fosse haxixe em vez de chocolate.
-       Boa tarde!- respondem as duas.
O segundo atendente é branco, barba cor de laranja, mesmo uniforme do homem negro, tão alto e forte quanto ele. Ele traz uma  barra semelhante a ele de chocolate branco com rosas. Chega perto e dá um tapa nas costas do colega negro. Tapa esse que acorda Lili que agora volta a atenção a cena.
-       Deixa que eu continuo o atendimento com essas daqui.- encara Mel e Clau, que sorriem satisfeitas em expectativa.
-        Que dia é hoje? ( ele pergunta)
-       É março.  diz Mel.
-       Perguntei o dia.
-       Sábado!  responde Clau.
-        Sábado. Vocês sabiam que o rei Asteca Montezuma, tinha uma bebida feita de cacau, que o encantava, ele entrava em transe com ela em rituais religiosos?
-       Clau- Não eram os vickings?
-       Eram os astecas.
-       Clau- Ok.

  Ele serve dois copinhos de cristal com a bebida achocolatada para as meninas provarem. Elas provam.
-       Nossa, mas não é doce.
-       Toma junto com esse doce.- e dá um doce pra ela.
-       Ah, esse sim é tão doce. Mmmmm!

  Ele convida as moças, que o seguem com seus copinhos de cristal em mãos, até uma salinha. Traz uma barra escura, corta com uma tesourinha, com todo cuidado,  explicando que no meio das duas barras há um papel vegetal fininho que as separa. Que é pra não grudarem uma na outra conforme o calor. Não pode. Porque se gruda uma na outra perde o glamour e a forma original de cada barra.
 Cada uma pega um pedacinho.
-Esse é 100% cacau.  ( explica)
O  pedaço é pequeno, Mel o enfia inteiro na boca.
       - Que gulosa!
-       Desculpe.
-       Não se desculpe. Vamos tentar de novo – e dá mais um a moça que o põe na boca. -  Deixe-o derreter. Devagar... Isso.  -  Sem descuidar de Mel ele observa Clau e alerta:
-       Não morde! Vai sujar seu dentinho. Muita pigmentação. Deixe debaixo da língua, na bochecha. Só em lugares fofinhos da sua boca. Se permita salivar. E respirar ao mesmo tempo, vamos lá, você consegue...

Depois da experiência, as meninas saem da sala mudas. Lili as espera na sala de entrada igualmente muda.

  Por fim aparece ao balcão o terceiro moço, com o mesmo uniforme dos outros dois. Este é moreno, barba mal feita, lindo, lindo,  boca carnuda, voz rouca, olhar denso. Estamos em seis, entre atendentes e clientes.

 As meninas se juntam ao caixa, para ouvir com atenção a explicação técnica gastronômica que traz o rapaz.

  A chuva aperta lá fora, e lá estão elas aprendendo sobre o tempo do cozimento. Como derreter delicadamente, sem coalhar. Inicia-se uma verdadeira tempestade lá fora, e bem lá  dentro, estão eles. Elas, entendendo a origem do cacau.  Como comer devagarzinho a diferentes tipos,  de modo que cada um deles não enjoe.  Bem pouquinho porque são cada qual  únicos, em personalidade e sabores muito intensos.

   As meninas recebem com atenção a aula e degustação dos tipos de chocolate, as misturas possíveis, e como fazê-las de modo delicioso, delirante, delicado e responsável.
 Por fim seus benefícios. Seratonina. Corpo cheio de ar, é aerado. O áspero conforme bem manipulado torna-se liso como plumas.
Os trovões aumentam e a audição da chuva que se faz  altíssima. Ensurdece a todos, agora só ouvidos aos suspiros do prazer que causa, o bom desfruto daquele alimento espiritual.
A luz cai num relâmpago, não é breu mas meia luz do fim de tarde chuvoso e cinza escuro. É março.  O atendente negro, para prevenir-nos dos perigos de tanta umidade, escuridão e relâmpagos, fecha a porta do estabelecimento. Delicadamente.

Fim.