segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Flanelinha



  Uma das explicações para o costume de se desejar “merda” a um ator de teatro, está ligado ao desejo de que o espetáculo lote de gente para assistir. Se o estacionamento do teatro enchesse de carruagens e cavalos, o que o deixava lotado de merda dos animais, é porque a peça foi um sucesso de público. Merda significa “que sua apresentação encha de gente!”.  Os atores, com dinheiro no bolso de uma apresentação cheia de espectadores, limpavam juntos toda a merda no dia seguinte.
 Flanelinha é o nome dado aos guardadores de carro. Não sei se já existiam na época da expressão “merda”. Talvez o flanelinha da época shakesperiana escovasse os cavalos?  Na minha cidade, eu vi  a profissão começar com moleques de rua que carregavam flanelas amarelas para limpar o vidro do carro  e humildemente pediam uma “ajudinha”. Hoje não são tão pequenos assim, nem tão de rua, e levam como profissão extra.  Nem se dão ao trabalho de carregar a flanelinha, não lustram carro nenhum, só prometem que seu carro estará ali, onde você o deixo quando você retornar. E as vezes ajudam as ceguinhas a fazer baliza ou a encontrar vaga.
 Dizem eles que guardam os carros e nós temos que acreditar que ele vai ficar ali cuidando do automóvel, e pagar adiantado. O valor que ele mesmo estipula. Caso contrário nos ameaçam com um olhar de injustiçado vingativo, palavras magoadas, mexendo com nossa culpa social. Desço do carro que me foi emprestado.
- Pode deixar Dona, vaio no teatro?
-Boa noite?
- É 10 reais adiantado.
- Não vou te dar 10 reais.
- Dona, no estacionamento do teatro é 20.
- Eu não sou dona e não tenho 20 reais pra botar no estacionamento, por isso estou deixando na rua.
- Então me paga 10 adiantado e seu carro vai estar aqui guardadinho, prometo pra senhora.
- Qual senhora? Moço eu tenho vinte e poucos anos, sou mais nova que você. Na volta , quem sabe.
- Moça to fazendo só dez mas tem que ser agora depois não dá.
- Como assim não dá? Voltou a inflação de 30 anos atrás?
- Eu vou estar aqui eu prometo pra senhora, te dou minha palavra.
- Moço, não custa 10 reais deixar o carro na sarjeta. Com o cartão zona azul, é 3 reais, e a esse horário é zero reais, se botar na rua, que é o que eu estou fazendo.
- Mas essa área aqui é muito perigosa, a senhora que sabe, vale investir.
- Perigoso é onde eu moro, aqui é bem rico, arborizado e tranqüilo.
- Tá tranqüilo, boa peça pra senhora. - ( e faz cara de vingança)
- Moço só vou a esta peça porque ganhei o ingresso, não tenho dinheiro nem para entrada. E esse carro não é meu! Peguei emprestado para conseguir chegar aqui a esta hora.
Eu estava quase implorando clemência! Saí andando mas logo voltei e não mais no tom anterior. Mas indignada de verdade.
- Moço, o senhor pretende riscar este carro.
- Não disse nada disso não.
- E por que me faz ter medo disso?
- A senhora é muito medrosa.
- O senhor percebe que me extorquiu, me ameaçou, me acuou?
- Não fiz nada disso não senhora.
- Como você se chama? E quantos anos tem pra me chamar de senhora toda hora?
-Não vou dizer meu nome não. A... senhora moça, ta brava aí, se ia pagar 20 reais no estacionamento do teatro, to aqui te fazendo esse favor...
- Errado 1: eu não ia pagar 20 reais no estacionamento.Errado 2: favor não se cobra.  A rua é pública!
- Iiiihhh de novo está história de rua pública, Imagine chega o ladrão aqui vê seu carro, e achado não é roubado, e a rua é pública...
 -Esse carro não é meu e nem é visado para roubarem.  Eu vou ao teatro e eu não vou colocar o carro no estacionamento embora ele seja emprestado e eu devesse protegê-lo melhor, mas sabe por que eu não vou fazer isso? – ele me olha calado.- Por que eu não tenho dinheiro!  Eu não tenho um puto pra comprar uma água e hoje está um puta de um calor!  Eu só vou assistir essa peça de teatro, sabe pra quê? Pra prestigiar os colegas, pra ver se eles se sensibilizam com minha presença, porque eu sou atriz e pra variar, mais uma vez, eu estou desempregada! O senhor sabe o que significa ser uma atriz não global neste país? Eu ganhei o ingresso, caso contrário não poderia assistir!
-Calma moça- diz ele um pouco mais prestativo.- Quer um cigarro?
- Ah! Agora eu voltei a ser moça. Quero.- começo a fumar o cigarro dele, que é o mesmo do meu, indignada não mais olhando pra ele que diz:
- Atriz é pior que nóis, né? Mó dureza. É artista, eu to ligado como é. Não vai perder a peça não, vai lá. Tem nada não, seu carro tá guardado aqui, não precisa trazer dinheiro nenhum você não tem. Você foi honesta, voltou pra conversar. Vai lá,  é nóis.
- E sabe o que mais?
- Não sei, mas pode ir moça, tá tudo certo aqui.
- Eu já vi este texto mil vezes! – ele me olha assustado.
- Hamlet né? Até eu já vi moça. Mas esse é com o galã da TV lá.
- Pois é, e eu o vi na TV muito mais que mil vezes! Mas eu tenho que ir por motivos políticos. Vou me atrasar.
-Boa peça.
 A peça foi muito boa. Quando eu volto, o senhor moço não estava mais lá como havia prometido. Mas o carro estava inteirinho. E com um bilhetinho no pára-brisa que dizia: “quiser ver umas peça lôca alternativa, liga nóis. Rogério.” E um número de telefone.

sábado, 24 de novembro de 2012

Dramaturgias Macabras - Sampa doc.



Comédia

No bairro jardins, a mocinha chiquérrima com sua bolsa Louis Vitton, estaciona seu carrão na porta de um restaurante em São Paulo. Antes de destravar o carro para o manobrista abrir, ela tira o cartão de débito de dentro da carteira e esconde a bolsa com celular e tudo de baixo do banco onde está o namorado sentado.
-Não vai levar a bolsa gatinha?
- De jeito nenhum. Se rolar um arrastão meu cartão de débito está na minha bolsa interna.
- Bolsa interna? Que conversa de canguru é essa?
- É uma bolsinha interna que só cabe um cartão, fica entre a blusinha e a lingerie. Última moda contra arrastão.- ela deixa o I-phone 4 e pega um celular antigo, também pequeno
- Não vai levar nem o celular?
- Mas no arrastão é o que eles mais querem: Celular! Pra comunicar a bandidagem da cadeia com a bandidagem da rua. Não tá sabendo? Quanto mais moderno mais eles gostam, esses antigos eles nem levam.- Ele dá um beijo nela e entra no restaurante todo feliz com a gata descolada e bem informada.

Jornal de papel

No dia seguinte, esse cara senta na varanda lê jornal, toma café e lendo o caderno de mercado, resolve investir na bolsa de valores, e na outra bolsinha e uma marca famosa de lingerie que lança essa bolsinha canguru, última moda das moças ricas de São Paulo. Ele vê a foto de Bündchen semi-nua, com cara de dor de dente, zóio de jibóia, e a tal bolsinha nas mãos. Em caso de amorzinho, cabe camisinhas também. Ele adora. Excitado, ele investe mais um pouquinho na internet pelo celular. E acende um baseado, pois já trabalhou hoje.

Telejornal

  Esse mesmo cara vê no noticiário  o governador dizendo a imprensa, que encontrou um novo nome para secretaria de segurança da cidade, já que o vigente pediu exoneração do cargo. O governador diz que este sim é macho, e está preparado para lidar com a situação. Era promotor e procurador de justiça.Um moço magro também tomando café e fumando baseado, vê a mesma TV na favela e diz segurando a bola:
- Promotor de justiça? Que P. de preparação é essa que ele tem? Pra lidar com isso aí tem que ter passagem na SWAT, ter sido líder do Hamas, ter vivido na palestina, ter ido para o Iraque... (indignado) Promotor de justiça! Vai fazer o quê com aquela escultura cega que segura uma balancinha? O melhor nome seria o... tsc, aquele o... - esquece o nome do seu palpite.
Muda canal tv para um jornal sensacionalista que conta: “ Terrorismo na zona oeste de São Paulo.  As 21 horas da noite de ontem, um bar que não havia sido avisado de toque de recolher, recebe a visita surpresa de assassinos motorizados. Dois homens numa moto atiram contra todos presentes no bar que tinha as portas abertas, mulheres e crianças que voltavam de um jogo de futebol. Os bandidos  fogem deixando um morto a queima roupa e dois feridos. As testemunhas, mais de 20 pessoas, vítimas deste ato terrorista (que segundo alguns moradores,  pode ter sido tanto do PCC como da própria polícia,) acabavam de voltar de um jogo de futebol entre dois times da mesma favela, que realizavam o jogo em pedido de paz. O menino morto tinha 19 anos. Jogava num dos dois times e tinha uma  esposa da mesma idade e uma filhinha.” Foto do casal. Imagens choro e tristeza no velório.  Sai sangue e lágrimas da TV.

Teatro

O corpo do menino demora horas para ser liberado ao IML devido a fila de mortos pobres desta noite. É que os mais pobres tem um planos de enterro mais lotado, rola uma fila. Com vergonha de dizer a família a verdade, “responsáveis” mentem dizendo que já estava na autópsia, enquanto o defunto se atrasava para o próprio velório lotado de amigos e parentes que o esperavam quando na verdade ele ainda estava coberto num canto do hospital. Saúde, educação, segurança... onde? Oi? Onu?

Internet

  Quem parece feliz é o senhor  Edgardo, dono da loja de caixões que acaba de comprar um carro novo com ar condicionado. Ele tem uma página no facebook chamada “Se vai, que vá com Deus”, e está investindo no negócio de cruzes, flores, esculturas de santos católicos, faixas, e plaquinhas com dizeres de saudades.  Ou dizeres de revolta. Estes são mais caros e devem ser sigilosos, afinal senhor Edgardo é católico, empreendedor, mas não é bobo.
 
Palhaço ( no sentido de o sujeito agir de modo "non sense")

O homem vai ao debate, para debater com especialistas no assunto e jura de pé junto  (para que só fiquem juntos e não amarrados) de que a situação está sob controle. Ele diz que o Estado de São Paulo é o mais seguro do país. O que me faz pensar em cancelar viagens pelo país. E mais, diz na verdade está tudo bem, que tudo isso é um sensacionalismo nas redes sociais. Sabe as redes sociais? Adoram lançar boatos que se espalham bobagens na cabeça da população com muita facilidade! Os deixando iludidos e apavorados a toa!Uma glamorização da informação!

Novela

 É de uma fé cênica que assusta! Diz estar falando a pura verdade, afinal ele não tem rabo preso com o PSDB, mas acha que na verdade pode ser tudo culpa do PT que está tomando o país e quer difamar o governo dos outros... No final só falta ele mostrar a língua para seu interlocutor.

Drama

O Brasil só não tem mais voz na ONU porque ainda, com seu auge na ditadura, é campeão em tortura. E onde acontece a tortura? Nos morros cariocas, favelas e principalmente nos presídios. No morro eu entendo, mas o presídio não seria um lugar de retenção e regeneração?  Deveria ser. Mas é o único lugar onde não cai o sinal de celular jamais. Se voce está com problemas de sinal no celular, experimente ligar de um presídio. Sinal ilimitado. 100% de mensagens enviadas com sucesso.

Tragédia

Ai de mim! É o fim. Quem diria que iria acabar assim. Há culpa da fumaça branca e do pó de pirilimpimpim.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O curativo provisório




  Band-aid nome provisório de um curativo pequeno, está até no Aurélio. É que curativo pequeno é palavra dupla e grande. Uma vez fui pegar uma travessa de doce na geladeira, ela se espatifou no chão espalhando tudo e cortando meu tornozelo em alguma veia que jorrava muito sangue. Como na casa que eu estava não tinha band- AID, nem esparadrapo, colocaram silver-tape e fizeram em mim o que batizaram de “ponto falso”.  Estava mesmo bem aberto, e sem o tal ponto falso ficaria sangrando e sujando a casa de viagem toda . O  procedimento evitou que ficasse em mim uma marca feia e aberta.  No final das contas não mais necessário foi ir ao médico fazer ponto verdadeiro. O ponto falso funcionou bem. A marca hoje existe, é pequena.  Quando fomos a cidade não quis estragá-lo pois estava funcionando,  então só troquei a silver tape por um esparadrapo branco, onde utilizei da mesma técnica para continuar forçando meu corpo e suas plaquetas a resolverem a situação da abertura da pele, com a tecnologia que eu dispunha.
 Como se machucam os índios que vivem ainda com pouca  roupa que os protejam? Imagino que para eles a natureza seja mais macia que uma casa cheia de eletrodomésticos perigosos, móveis e vidros pontiagudos, ainda mais os modernos dinamarqueses.   Será que se machucam menos? Tenho uma amiga que fez uma cirurgia no pé porque o torceu andando numa superfície reta, com um salto alto chiquérrimo que lhe custou alta quantia, lhe ferindo algo de muitíssimo mais valor: o próprio corpo, cujo o qual não pode existir nada mais de valioso.
 Um índio tem índice de intoxicação por carne estragada? Pode processar o curandeiro por charlatanismo ou o cacique por corrupção? A carne chega a estragar numa tribo indígena, ou só comem  carne de peixe? Afinal usam um outro sistema de armazenamento e cozimento que usam. Não?
 Intermináveis são as discussões sobre inclusão do povo descendente de negro e índio que está em efervescência no país. Aonde eles querem ser incluídos? Os negros querem igualdade e que paguem a dívida social.  Os escravocratas já morreram. Em vez de fazer uma super sessão espírita que convoque os que erraram antes, teremos que negociar com os vivos presentes de hoje mesmo.  Indios e negros tem motivos e questões distintas, que devem começar a ser testadas, uma a uma, provisoriamente até se acertarem, pois toda raça humana, seus grupos e etnias estão passando por revoluções de pensamento e comportamento. Ainda bem.
Teremos de todos nos organizar a fim de que o respeito e a liderança de cada cultura se pulverize e se auto-reja com igualdade de representantes num mundo globalizado. Imagine se os japoneses quisessem cotas em universidades públicas? Só tem japa na USP! Eles deveriam pedir cotas na NBA para terem o direito de representatividade no basquetebol. Árabes devem querer descontos nos tecidos afinal as moças deles cobrem até os olhos, enquanto que as índias andam nuas e tomam banho de rio ao léo sem véu.
 A política de cotas, a pena de morte estão sendo pensadas, mas me parecem tapar sol com peneira.  Fazer o quê se estamos em tempos de sol a pino, aquecimento global e a própria peneira já ameniza o sol escaldante?  É tão absurdo que sejam necessárias cotas em universidade, em poder público para negros e índios, assim como é tão absurdo que seja necessário ter que pensar em retroceder com a pena de morte, só porque os homicídios tem aumentado nas ruas. No entanto eu concordo que se discuta tudo isso por um só motivo: acredito nos caminhos do porvir! Toda essa baboseira tão importante e fundamental, será motivo de piada quando um dia atingirmos uma sociedade justa.  Onde se consiga uma ordem. A ordem será o respeito, o consenso. E sempre haverá reajustes. Eternos reajustes.
 Este dia chegará depois de muita luta, mas não a com sangue habitual das décadas anteriores, que mostrou-se ineficiente e gerador do sentimento de vingança, mas a luta que queima neurônios para chegar as melhores idéias. E coragem para testá-las com suavidade, sem traumas, com a concessão de todos envolvidos. Esse meu discurso é mesmo patético.  Meu sonho de miss: a paz mundial.

  Ontem queimou a lâmpada da cozinha, quando finalmente eu havia ajeitado a iluminação da sala. Assim como na minha casa sempre vai faltar uma coisinha aqui e ali, as políticas irão se ajustando de acordo com as necessidades, não é mesmo?
   Num país tão grande e miscigenado como o nosso, e onde principalmente existem além dos imigrantes brancos de todas as partes, há um fortíssimo traço de população negra e índia, é mais que evidente que haveria de já estarem de velhos, super incluídos nas políticas todas: econômicas, sociais e culturais.  Acho válido que por sua tamanha expressão no país tenham correspondentes nas lideranças para estarem com todos os outros representantes, juntos na mudança de pensamento neste país. Vamos conseguir, somos bons nisso. Vide o Bom Retiro cheio de árabes e judeus ortodoxos almoçando em restaurantes koreanos!
   Todavia o Brasil sempre copiou ou foi influenciado por tantas culturas, e agora precisa  unificar e fortalecer  a sua própria.  Significa unir todas aqui presentes, não mais segregar. Mesmo que pra isso sejam adotadas medidas provisórias, progressistas, mas humanas antes de tudo. Um humano que entende que tem mais de mil versões étnicas, cada vez mais miscigenadas, e que também sabe que é parte de um planeta que tem a obrigação de manter, usufruir e também fornecer, equilibradamente.

Atentemos a afobação arqui-inimiga da perfeição. O desespero por justiça virou ganância de um estadista como Getúlio Vargas criando governos provisórios onde havia uma urgência de organizar os trabalhadores/exploradores brasileiros. A ditadura militar tinha a urgência de eliminar a possibilidade comunista. E todas as urgências afobadas que terminam em más experiências que atrasam a evolução que todos almejam.
 Que tudo seja analisado e votado. Qual resposta será há a mais cabível para todos hoje?
Uma sociedade mais justa consequentemente diminuirá a violência que poderá evitar a necessidade de pena de morte. Cotas para uma raça que reclama de exclusão centenária, terras para uma outra que não quer precisar de cotas, mas ter o direito de viver como acha que deve em terras de seus ancestrais. A terra é de todos ancestrais. Organizemos o espaço. Ninguém vai ficar sem terra para que alguém tenha a mais. Todos tem ancestrais, todos querem cotas, todos querem terras. Eu preciso de terra somente para o meu jardim, o máximo que eu planto são manjericões para o molho de tomate. Como filha legítima da cidade concreta, minha necessidade é outra.
Deve importar menos o  passado, que só nos serve aprender com os erros  e mirar em acertos futuros. Pensemos no presente e no futuro sem temê-lo, mas resolvê-lo sem pressa. Uma medida pode prevalecer outra deve sumir, mas devemos tentar o novo sem medo.
Vivemos um tempo de pura transição. Para algo que ainda não sabemos ao certo o que é.  Aqui chamamos de caminhos do porvir. Que só virão de fato, assim mesmo: testando, sem trauma, ocupando lentamente. Nada de enfrentamento ou comparações.  Em vez de divergir e confrontar: concordar, adicionar, encaixar para todos, que somos um tipo: brasileiros. Humanos. Terráqueos.

De violão nas costas


Meu pai é músico. É por isso que eu tenho vinis do Jhonny Winter, Jimmi Hendrix, Rolling Stones. Por causa desta influência tenho outros vinis também além dos que afanei dele. Em 1983, quando eu nasci, meu pai achando que eu fosse me chamar Luis Filipe, me comprou um violão, um Di Giorgio de madeira belíssimo. Depois ele achou que minha irmã fosse se chamar Marlon, comprou outro violão, mas nasceu Helena. Quando a Mariana, terceira filha nasceu, ele não arriscou mais nomes de homens e parou de comprar violões. Se conformou em ter três filhas. Tentou me ensinar violão e o máximo que aconteceu foi eu saber cantar um pouco, ser mais ou menos afinadinha. Do instrumento sei alguns acordes que saem abafados quando os tento. Logo começa a machucar os dedos e já desisto. A inteligência musical é uma das mais rebuscadas que tem, dizem , e eu acredito nisso. Devo ter herdado um pouco esta inteligência, mas não a disciplina que um instrumento exige. Como o violão é muito bonito pensei em consertá-lo para botar na estante da sala, assim quando vier visita que toca, eu canto. E quando não tiver ninguém em casa, eu tento uns acordes. 
  Levei por recomendação do papai a um consertador profissional de violas, violões e guitarras na vila madalena. Meu pai não conseguia me dizer o  nome e número do lugar então tive que achar pelas características que ele me deu:
-É um japonês cabeludo, meio véio, numa casa azul na Teodoro Sampaio.
-E onde fica a casa na Teodoro Sampaio?
-É uma escada que sobe, antes da galeria.
-Escada que sobe. Qual galeria, pai?
-É... depois sobe mais outra escada, são duas escadas. Tem que ser com esse cara ele sim é bom. Ele vai dizer o que precisa fazer no violão.
- E como ele chama?
- Não sei. Mas tem que ser lá, só pode  ser lá.
  O pior é que eu encontrei o lugar facilmente!  O japonês cabeludo não trabalhava mai lá. Quem me atendeu foi um senhor argentino chamado Juan.  A parte de baixo da loja tinha exposto vários instrumentos de cordas muito bacanas. A parte de cima, da segunda escada, era uma marcenaria de instrumentos. Lugar sonoro, encantador. Cheio de músicos testando, tocando. Deixei minha viola nas mãos de Juan.
  Sábado a tarde depois de uns 5 dias, fui buscar a bichinha. Novinha em folha. Tinha umas esposas de músico me olhando na loja, todas tatuadas, fumavam cigarro na varanda no topo da primeira escada. Tem tipo um palco ali, talvez para as pessoas ensaiarem. Me disseram que as vezes até tem shows nesse espaço.
- Você toca faz tempo? – perguntou-me Juan com sotaque argentino.
- Sim.
- Quer testar?
- Não, não, imagine, só de olhar já dá pra ver que tá massa.
   Fumei um cigarro de filtro vermelho, fiz cara de artista e segui pela Vila Madalena no sábado de sol com o violão nas costas. Comecei descendo a Teodoro Sampaio e depois subindo a Praça Bendito Calixto, lotada de gente a passear pela feirinha de antiguidades, e pelos bares e cantos dali. Então me dei conta que estava de óculos escuros do Ray Charles, coturnos pretos, calça preta e uma camiseta branca com um desenho em preto muito louco. Eu estava sendo vista como uma rockeira “madalenandante”.
 Quando cheguei ao beco da vila madalena, espaço de paredes grafitadas e constante eventos culturais, percebi que haviam montado um half de skate.  Tocava ska, som perfeito para o esporte.
   Conta-se pelos antigos moradores da Vila Madalena, os velhinhos que ainda conseguem dormir na badalada região, que toda a extensão que compreende os bairros Vila Beatriz, Vila Ida e Vila Madalena, pertenciam a um português.  Quando ele vendeu os lotes para prefeitura , pôs os nomes das filhas nas divisões feitas. Mas a vila Madá, como a apelidamos, virou a preferida dos artistas. Ela ascendeu assim por causa de um bondinho que botaram nela no começo do século. Hoje um apartamento dos chiquérrimos arquitetos franceses da Tryptic, construído na região valem mais de milhões. É que os ricos seguem os artistas. Agora o bairro valorizou tanto que nenhum artista pode viver lá, mas ainda passeiam e se apresentam por ali.
 Muitos deles me cumprimentavam com olhar e gesto parceiro, achando que eu fosse uma guitarrista a caminho do trabalho.
- Toca rock? – me perguntou um na rua.
- Opa!-
- MPB também?  Reggae?- fiz com a cabeça que sim!
Ele disse nome de bandas que eu conhecia e eu disse que tocava todas aquelas! Então ele constatou:
- “Nóis do som têmo que tocar tudo mêmo! Essa é a lei! Não sendo sertanejo, já era! Hahaha!”
 Concordei de novo e continuei caminhando. Não estava mentindo, toco tudo isso no som de casa!  Adorei sentir o assédio de andar na Vila Madalena com figurino de guitarrista. Enquanto o sol se punha nas cores vibrantes da Vila que nascia pra noite bohêmia.