Uma das explicações para o costume de se desejar “merda” a
um ator de teatro, está ligado ao desejo de que o espetáculo lote de gente para
assistir. Se o estacionamento do teatro enchesse de carruagens e cavalos, o que
o deixava lotado de merda dos animais, é porque a peça foi um sucesso de
público. Merda significa “que sua apresentação encha de gente!”. Os
atores, com dinheiro no bolso de uma apresentação cheia de espectadores,
limpavam juntos toda a merda no dia seguinte.
Flanelinha é o nome dado aos guardadores de carro. Não sei
se já existiam na época da expressão “merda”. Talvez o flanelinha da época
shakesperiana escovasse os cavalos? Na minha cidade, eu
vi a profissão começar com moleques de rua que carregavam flanelas
amarelas para limpar o vidro do carro e humildemente pediam uma
“ajudinha”. Hoje não são tão pequenos assim, nem tão de rua, e levam como
profissão extra. Nem se dão ao trabalho de carregar a flanelinha,
não lustram carro nenhum, só prometem que seu carro estará ali, onde você o
deixo quando você retornar. E as vezes ajudam as ceguinhas a fazer baliza ou a
encontrar vaga.
Dizem eles que guardam os carros e nós temos que acreditar
que ele vai ficar ali cuidando do automóvel, e pagar adiantado. O valor que ele
mesmo estipula. Caso contrário nos ameaçam com um olhar de injustiçado
vingativo, palavras magoadas, mexendo com nossa culpa social. Desço do carro
que me foi emprestado.
- Pode deixar Dona, vaio no teatro?
-Boa noite?
- É 10 reais adiantado.
- Não vou te dar 10 reais.
- Dona, no estacionamento do teatro é 20.
- Eu não sou dona e não tenho 20 reais pra botar no
estacionamento, por isso estou deixando na rua.
- Então me paga 10 adiantado e seu carro vai estar aqui
guardadinho, prometo pra senhora.
- Qual senhora? Moço eu tenho vinte e poucos anos, sou mais nova
que você. Na volta , quem sabe.
- Moça to fazendo só dez mas tem que ser agora depois não dá.
- Como assim não dá? Voltou a inflação de 30 anos atrás?
- Eu vou estar aqui eu prometo pra senhora, te dou minha palavra.
- Moço, não custa 10 reais deixar o carro na sarjeta. Com o cartão
zona azul, é 3 reais, e a esse horário é zero reais, se botar na rua, que é o
que eu estou fazendo.
- Mas essa área aqui é muito perigosa, a senhora que sabe, vale investir.
- Perigoso é onde eu moro, aqui é bem rico, arborizado e tranqüilo.
- Tá tranqüilo, boa peça pra senhora. - ( e faz cara de vingança)
- Moço só vou a esta peça porque ganhei o ingresso, não tenho
dinheiro nem para entrada. E esse carro não é meu! Peguei emprestado para
conseguir chegar aqui a esta hora.
Eu estava quase implorando clemência! Saí andando mas logo voltei
e não mais no tom anterior. Mas indignada de verdade.
- Moço, o senhor pretende riscar este carro.
- Não disse nada disso não.
- E por que me faz ter medo disso?
- A senhora é muito medrosa.
- O senhor percebe que me extorquiu, me ameaçou, me acuou?
- Não fiz nada disso não senhora.
- Como você se chama? E quantos anos tem pra me chamar de senhora
toda hora?
-Não vou dizer meu nome não. A... senhora moça, ta brava aí, se ia
pagar 20 reais no estacionamento do teatro, to aqui te fazendo esse favor...
- Errado 1: eu não ia pagar 20 reais no estacionamento.Errado 2:
favor não se cobra. A rua é pública!
- Iiiihhh de novo está história de rua pública, Imagine chega o
ladrão aqui vê seu carro, e achado não é roubado, e a rua é pública...
-Esse carro não é meu e nem é visado para
roubarem. Eu vou ao teatro e eu não vou colocar o carro no
estacionamento embora ele seja emprestado e eu devesse protegê-lo melhor, mas
sabe por que eu não vou fazer isso? – ele me olha calado.- Por que eu não tenho
dinheiro! Eu não tenho um puto pra comprar uma água e hoje está um
puta de um calor! Eu só vou assistir essa peça de teatro, sabe pra
quê? Pra prestigiar os colegas, pra ver se eles se sensibilizam com minha
presença, porque eu sou atriz e pra variar, mais uma vez, eu estou
desempregada! O senhor sabe o que significa ser uma atriz não global neste
país? Eu ganhei o ingresso, caso contrário não poderia assistir!
-Calma moça- diz ele um pouco mais prestativo.- Quer um cigarro?
- Ah! Agora eu voltei a ser moça. Quero.- começo a fumar o cigarro
dele, que é o mesmo do meu, indignada não mais olhando pra ele que diz:
- Atriz é pior que nóis, né? Mó dureza. É artista, eu to ligado
como é. Não vai perder a peça não, vai lá. Tem nada não, seu carro tá guardado
aqui, não precisa trazer dinheiro nenhum você não tem. Você foi honesta, voltou
pra conversar. Vai lá, é nóis.
- E sabe o que mais?
- Não sei, mas pode ir moça, tá tudo certo aqui.
- Eu já vi este texto mil vezes! – ele me olha assustado.
- Hamlet né? Até eu já vi moça. Mas esse é com o galã da TV lá.
- Pois é, e eu o vi na TV muito mais que mil vezes! Mas eu tenho
que ir por motivos políticos. Vou me atrasar.
-Boa peça.
A peça foi muito boa. Quando eu volto, o senhor moço não
estava mais lá como havia prometido. Mas o carro estava inteirinho. E com um
bilhetinho no pára-brisa que dizia: “quiser ver umas peça lôca alternativa,
liga nóis. Rogério.” E um número de telefone.